Discutir as tendências, os desafios e as perspectivas de atuação das organizações da sociedade civil no Brasil do século XXI, passa, necessariamente, por uma reflexão ampla sobre o contexto que tem influenciado esse campo nas últimas décadas.
Adriana Ramos, membro da diretoria executiva da Abong e coordenadora do Programa de Política e Direito Socioambiental do Instituto Socioambiental (ISA), lembra que uma das principais mudanças diz respeito à forma como algumas organizações da sociedade civil se estruturaram no Brasil, pautadas em parcerias e financiamento da cooperação internacional.
Por conta das transformações e avanços sociais e econômicos que o Brasil viveu nos últimos 20 anos, o financiamento internacional foi diminuindo. “Essa mudança crucial fez com que as organizações tivessem de buscar apoio na própria sociedade brasileira, e isso é difícil, pois não temos uma cultura estabelecida de doação. O setor privado não tem a prática de investir na sociedade civil para o desenvolvimento de ações mais autônomas. As oportunidades que aparecem são para prestação de serviços ou para ações das áreas de interesse das empresas”, avalia Adriana.
A chegada de novos atores no campo, como os negócios de impacto – empreendimentos que geram retorno financeiro, mas com foco no impacto socioambiental –, traz também novos desafios para a forma como as organizações sociais captam recursos.
“Trata-se de uma profunda mudança. O relatório J.P. Morgan – Perspectives on Progress: The Impact Investor Report, de 2010, estimava que o investimento de impacto até 2020 poderia chegar a movimentar um trilhão de dólares no mundo. Já estamos vendo isso acontecer. Hoje estima-se algo na casa de 2,6 trilhões de dólares em investimento de impacto no mundo. As organizações sociais, por outro lado, precisam desenvolver modelos de negócios mais sustentáveis, técnica, operacional, institucional e economicamente. Antes as organizações captavam recursos em fundos filantrópicos e sem necessidade de uma prestação de contas tão rígida. Hoje é muito diferente”, explica Marcel Fukayama, co-fundador da Din4mo.
Sociedade conectada
Em paralelo a esse debate, é preciso destacar também que, a partir de 2010, emerge ainda um novo sujeito político, o cidadão interconectado, que no mundo todo mostra sua cara a ponto de ser eleito em 2011 a “pessoa” do ano da Revista Time. Quem não se lembra do cartaz “Saímos do Facebook”, empunhado nas manifestações brasileiras em junho de 2013?
Com a explosão do mundo virtual e essa relação do indivíduo com a informação, a forma com a qual os cidadãos são chamados à participação dos debates políticos, uma nova dinâmica para o campo social é apresentada. Há um ativismo local mais forte e a tendência de participação social deixa de ser institucionalizada, com o surgimento de espaços informais em que a influência política consegue se traduzir de forma mais efetiva.
“Essa dinâmica de participação mais dispersa e diversa coloca em questão o próprio papel das organizações. E isso traz algumas questões. A primeira é como as organizações dialogam com essa sociedade difusa e com vontade de participar, mas que não necessariamente vai buscar na organização esse espaço para tal. Ou seja, é preciso lidar com esse público, respeitando a sua autonomia. A questão da linguagem passa a ser fundamental. As organizações que têm conseguido utilizar uma linguagem interessante e simples têm grande potencial de contribuição ao debate público. O nosso papel agora é de colocar à disposição desse público todo o conhecimento que as organizações têm e ajudar a mediar o debate, qualificar melhor a participação”, sinaliza Adriana Ramos.
As organizações do século XXI
O fato é que esse novo cenário tem demandando das OSC um esforço de repensar, alterar e criar novas formas de fazer em diversas frentes.
“É hora de inovar, pois a forma como as organizações atuam não dá mais conta. Por isso, elas precisam pensar: como eu faço os serviços, projetos, adequados a esse novo mundo em que eu vivo? Como eu penso a forma que eu ofereço meu trabalho? Como eu comunico tudo isso? É hora das organizações olharem para o seu planejamento estratégico”, sinaliza Patrícia Santin, sócia-fundadora da Sementeira – Inovação Social e Desenvolvimento.
Um ponto crucial, apontam os especialistas, são os esforços no campo da comunicação, tendo em vista que as organizações precisam comunicar de forma mais evidente o que fazem e o benefício do que fazem para sensibilizar a sociedade sobre o seu trabalho. Estar e se fazer presente nas redes sociais não é só tendência, mas tática de sobrevivência. Para Sérgio Andrade, as organizações que utilizam as novas ferramentas de comunicação com as características e os anseios da população mais jovem tendem a se destacar.
Outro aspecto fundamental é a adequação às exigências formais destes novos modelos de financiamento, com a necessidade de reporte de resultados e demonstração de impacto, registro e abertura de dados e informações. Questões que impactam na estruturação interna das organizações, com a criação de mecanismos de controle e prestação de contas efetivos. Ou seja, melhor governança e maior transparência são essenciais.
Por isso, modelos organizacionais mais fluídos, abertos, flexíveis e menos hierárquicos tendem a se destacar. “A estrutura muito pesada, com planejamento engessado, impede que a organização se transforme. Hoje é uma coisa e amanhã é outra. Ela precisa ser flexível para poder aproveitar as oportunidades que surgem no dia a dia”, comenta Patrícia Santin.
As oportunidades passam, inclusive, apontam os especialistas, por estar atento às temáticas mais emergentes, às causas urgentes da sociedade, nas quais as organizações precisam se conectar e atuar de forma mais efetiva. Temáticas como mudanças climáticas, mobilidade urbana, controle social, participação política, gênero, refugiados estão na pauta.
“As questões centrais não mudaram. O que muda são os caminhos de enfrentar problemas históricos que perseguem a humanidade (a maior parte deles produzidos pela própria humanidade). Ou seja, não pode haver uma organização social inovadora que não esteja plenamente dedicada ao combate à desigualdade, à afirmação de uma democracia real, em conexão com os ‘de baixo’. Sem isso, o caminho pode ser interessante, mas o foco é inócuo. Os problemas atuais para enfrentar essas questões são de escala global, o que só amplia nossa responsabilidade. Ao longo dos tempos, muitas outras mulheres e homens se dedicaram à construção de um mundo mais justo e livre. Entendo que estamos construindo mais um capítulo dessa história. Tudo isso para dizer que valores como a democracia, a luta pela igualdade e a liberdade, o compromisso ético com o outro e a diversidade são os que não podemos perder de vista”, apontam Rodrigo Savazoni, Georgia Nicolau e Niva Silva, criadores do Instituto Procomum.
Cadê os recursos
Para enfrentar as questões ligadas à sustentabilidade financeira, as organizações precisam compreender que os recursos fluem, cada vez mais, para quem encontra soluções compartilhadas para resolver os problemas sociais e ambientais e consegue comprovar seu impacto. Além disso, precisam compreender que elas próprias são fontes de muitos recursos fundamentais para o futuro próspero da humanidade e do planeta.
Nesse caminho, será fundamental desenhar um modelo de financiamento que seja alinhado ao seu propósito, sustentável e diversificado – que possa envolver a criação de negócios sociais, geração de receitas próprias, parcerias com empresas, doações individuais etc. O importante é entender que receitas e propósito devem estar alinhados e que ninguém faz nada sozinho.
“O compartilhamento de causas, de problemas, de estruturas, de financiamento, também é uma tendência muito importante que precisa ser observada. Vamos ter mais organizações que vão funcionar em regime de cooperação, de condomínio, operando no mesmo ecossistema. Elas vão estar mais próximas, e isso pode diminuir a perspectiva de competir por recursos, na medida que eu tenho complementações para um impacto mais sistêmico”, aponta Sérgio Andrade.
Para o co-fundador da Din4mo, inclusive, uma característica marcante das organizações do século XXI é justamente essa abordagem extremamente sistêmica, com uma grande capacidade de mobilização e articulação. “São instituições com um viés de trabalho intersetorial muito forte, trabalhando com advocacy, com influência em políticas públicas, com um domínio técnico importante. E, principalmente, com capacidade de estabelecer alianças e parcerias estratégicas.”
Relação com o Estado
Diante de um Estado que, cada vez mais, deixa de atuar na perspectiva mais estruturante de produção de políticas públicas, abre-se um espaço e um campo de atuação para as OSC. As organizações que irão se destacar nesta relação, acredita Sérgio Andrade, são aquelas que trazem alternativas para a solução de problemas locais.
“No ponto de vista local, dada a fragilidade dos municípios e a crise de financiamento, há um movimento para fazer junto. Os municípios demandam isso: em que medida as organizações são capazes de construir alternativas para atender aos cidadãos? Isso vai abrir um ciclo de inovações nas cidades. Trabalhar com os governos será uma oportunidade para conseguir pensar em alternativas um pouco fora do padrão, de fazer diferente porque não vai haver uma grande ingerência do governo federal.”
Por outro lado, destaca o especialista, essas inovações precisarão estar acompanhadas do envolvimento de órgãos de controle e, em alguma medida, do legislativo. “As organizações que queiram trabalhar, inclusive, pela qualidade do legislativo, têm grande espaço, com financiamento internacional. No caso brasileiro isso é visível. Terão pela frente um enorme desafio, mas muito espaço”, ressalta.
(*) A matéria é parte do primeiro fascículo da Coleção Mobiliza, que teve como tema: “Organizações Sociais Conectadas – tendências e desafios para o século XXI”. Clique aqui para baixar a publicação completa.