Há alguns anos parecia ser algo incompatível para as organizações promover geração de valor socioambiental e, ao mesmo tempo, ter retorno financeiro. Hoje, esses dois objetivos têm se aproximado cada vez mais. O movimento vem ao reboque de uma crise em que recursos se tornam cada vez mais escassos, assim como a percepção clara de que, para darmos conta dos déficits sociais e ambientais no século XXI, é preciso que empresas, organizações do terceiro setor e instituições públicas trabalhem de forma colaborativa.
Diante deste cenário, novos formatos organizacionais híbridos surgem e trazem oportunidades para a própria condição de sobrevivência, efetividade e perenidade das organizações da sociedade civil (OSCs). Afinal, quais seriam então estas aproximações e os elos entre as OSCs e os negócios de impacto, por exemplo? Há sinergias? Há possibilidades de atuação conjunta?
Essas foram algumas perguntas que a pesquisa-ação promovida pelo Centro de Empreendedorismo Social e Administração em Terceiro Setor da Universidade de São Paulo (CEATS), o Instituto de Cidadania Empresarial (ICE) e a Ashoka buscou responder. A proposta foi analisar e sistematizar as práticas adotadas por OSCs para assegurar sustentabilidade financeira a partir da estruturação de produtos e serviços voltados para o mercado. Foram realizadas entrevistas com 12 empreendedores sociais e gestores de OSCs, assim como workshops e webinar com estes atores sociais.
O estudo “Lições da Prática” aponta que há abertura por parte de OSCs para desenvolverem iniciativas de mercado a partir de diversos formatos e modelos. No entanto, são muitos os desafios a serem enfrentados nesse percurso.
Para refletirmos sobre o contexto atual, a Mobiliza realizou uma entrevista com a professora Dra. Graziella Maria Comini, coordenadora do CEATS, que esteve à frente de todo o processo da pesquisa. O Centro é referência no campo, com atuação desde o início dos anos 90.
Para a especialista, hoje, promover alternativas e práticas de mercado é mais uma oportunidade para as organizações garantirem sua sustentabilidade financeira, mas isso deve ser feito de forma planejada, a partir de uma avaliação profunda e interna na OSCs, para que não desvie da sua missão. Segundo a professora, o legado das organizações, com toda a geração de valor socioambiental que elas promovem, deve ser valorizado pelos negócios de impacto. Já estes novos modelos, podem ser uma oportunidade para dar escala à atuação das organizações. O momento atual é de complementariedade.
Confira a entrevista completa:
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Quando que estes dois grandes objetivos – gerar valor socioambiental e ao mesmo tempo ter retorno financeiro – começaram a ficar mais próximos? O que provocou essa aproximação?
No final dos anos 90 e início dos anos 2000, as organizações e empresas tradicionais começam a levantar a bandeira da sustentabilidade. Antes a responsabilidade social corporativa era vista como uma questão mais periférica. Quando era algo mais relevante, elas criavam até institutos e fundações, mas muitas dessas ações eram descoladas do core da organização.
Entrar no debate da sustentabilidade é uma grande oportunidade para pensar: se eu tenho que atingir objetivos sociais e não só financeiros, como vou olhar para essas ações, que muitas vezes já fazia, de uma maneira mais estratégica? E é nessa agenda, seja por pressão da sociedade, seja por novos estímulos dos jovens, que se começa a repensar o modelo tradicional de fazer business. E a discussão passa a ser: será que o meu propósito não deve ser justamente gerar valor socioambiental e ser rentável? Será que os objetivos e intencionalidades não são compatíveis? Compatibilizar estes dois tipos de intenções não eram possíveis dentro da empresa tradicional, que sempre buscou gerar – apenas – valor econômico. A geração de valor socioambiental vinha em segundo plano.
Nesse momento começam então a surgir negócios que já nascem com uma visão compartilhada. Quando discute negócios sociais – inclusivos, de impacto – você equipara essa intencionalidade. É um movimento que vai acontecendo principalmente a partir do final dos anos 2000.
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E como essa discussão passa a fazer parte também do universo das OSCs?
Num contexto de restrição de recursos, assim como da necessidade de profissionalização, até para estabelecer parceiras. Com a demanda por mostrarem resultados e impacto, as OSCs vão também aprendendo como funciona esse mercado que, a princípio, nasce para ajudar a resolver as problemáticas que o próprio mercado acabou criando. Afinal, essa desigualdade que temos não nasceu do zero. São questões seculares, mas também foram acentuadas por este capitalismo baseado no individualismo e na apropriação do excedente que não se dá de maneira coletiva.
Assim, as OSCs começam a perceber que podem também atuar no mercado de outra forma, complementando o seu orçamento, que normalmente era composto de recursos que vinham de fontes públicas, editais, doações internacionais, de pessoas físicas, parcerias com institutos e fundações etc. Elas passam então a refletir sobre ter atividades de geração de renda que possam reconhecer uma expertise que já tem e passe a compor o seu orçamento para conseguir materializar a sua missão.
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Esse movimento de aproximação com o mercado veio, portanto, da crise?
As OSCs, desde a sua origem, sempre tiveram atividades de geração de renda, seja a realização de um bazar, a venda de produtos etc. Mas, na maioria dos casos, eram atividades que não tinham a ver com a missão da organização, era algo periférico, que nem refrescava o orçamento.
A crise de 2008 abateu as organizações e, junto a isso, tem uma crise que explodiu nos últimos anos em termos dos recursos públicos. Muitas delas que atuavam nessa parceria com o Estado começaram a ter muitas dificuldades. Assim, estes atores sociais, que sempre foram muito criativos, pensam: Por que não ter outras alternativas [de renda]? Não que substitua a captação tradicional, mas que complemente. Esse é o movimento que vamos vendo na perspectiva das OSCs.
Muitas tribos estão discutindo a temática de negócios de impacto. Mas precisamos também que estes grupos comecem a construir elos com as OSCs. A questão é que, na maioria dos casos, elas ainda estão na fase de experimentação.
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E onde podemos ver estes elos? Como eles podem se dar?
O campo poderia estabelecer elos mais fáceis, pontes. A gente não pode desconsiderar toda uma experiência consolidada das OSCs que, já de fato, geram valor social. Isso é legado. Temos hoje várias startups, iniciativas que querem gerar valor socioambiental, mas querem ser rentáveis. No caso das OSCs, elas já geram valor socioambiental, mas estão precisando compor melhor a sua parte financeira, pensando não o lucro como apropriação, mas como que o superávit pode inclusive ampliar o alcance do seu campo de atuação.
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Mas há um grande receio – por parte de diversas organizações – que agora todas precisam virar negócios de impacto, como se fosse uma evolução. Como vocês avaliam esse cenário? O que se aproxima, conecta e o que difere?
Este é um ponto fundamental que precisamos trabalhar de uma maneira mais ampla. Primeiro, a gente precisa desmistificar que todos os problemas socioambientais vão ser resolvidos por iniciativas de mercado. Isso não é possível. Elas podem contribuir. Não dá para pressupor que consigam direcionar todas as respostas. Não dá para avaliar como uma linha de evolução.
Mas ao mesmo tempo, você pode olhar como sendo mais uma possibilidade, junto com outras. Na perspectiva da OSCs, elas podem ver essa possibilidade e como vamos conduzir isso internamente, pois é uma questão de foro íntimo da organização. Esse grupo precisa refletir se é possível, se acha que é interessante e se isso ajudaria a obter mais recursos para viabilizar a missão da organização. E pode ser que algumas achem que não, devido ao tipo de organização, por aquilo que fazem. E tudo bem também.
Já na perspectiva de quem tem recursos, não pode haver uma miopia, de achar que agora vai ser tudo resolvido por iniciativas de mercado. Poderia até ser o desejo, já que traz uma sensação de que a organização não vai depender tanto, de que não vai precisar somente de você, já que o negócio tem na sua gênese ter sustentabilidade financeira.
Porém, o que tem que ser com essas organizações de fomento é sensibilizá-las sobre a importância de acreditar nas OSCs nos diferentes formatos que elas se proponham a ter. E de não canalizar todos os seus recursos para aquilo que é a “bola da vez”. Senão, você desconsidera toda as suas experiências e os seus saberes. E, na hora em que analisamos todos os resultados de impacto, percebemos sim que as OSCs têm uma preocupação de gerar impactos profundos, de desenvolvimento local, e que muitas vezes não são escaláveis. E é importante que aconteça essa transformação mais profunda. E algumas iniciativas de mercado vão ser escaláveis, só que elas não vão fazer grandes transformações, vão fazer algumas contribuições.
Ou seja, elas são complementares. E essa complementariedade pode existir dentro de uma própria organização sem fins lucrativos.
Sendo assim, os institutos e fundações que são investidores precisam pensar que não dá para jogar todas as fichas em iniciativas de mercado, mas que podem também acreditar que elas são complementares ao que uma OSC já testou, já fez, e replicar, por exemplo. Acho importante tirar do cenário a palavra ‘evolução’. É mais uma alternativa. Não tem um modelo ideal.
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O que então as OSCs podem olhar com atenção para os negócios de impacto e vice-versa? Onde existe essa complementariedade, o elo?
Se é elo não tem uma parte mais importante. É uma relação de troca, de aprendizado mútuo. As OSCs sabem gerar valor socioambiental, isso é fato. Elas permanecem, são legítimas, reconhecidas nacionalmente e internacionalmente, sabem fazer e já mensuram resultados. Essa dimensão é o que elas já poderiam mostrar e sinalizar para os negócios que estão entrando numa seara nova. Você vê um negócio que começa a atuar na área da saúde, por exemplo. Quem mais do que o projeto Saúde Criança, por exemplo, sabe sobre o contexto, a dinâmica e a complexidade dessa área? E não digo que é para estes dois se falarem. É um “trabalhar junto”, ver aquilo que a organização faz e eventualmente ampliar, replicar. Tem algo de valorizar essa expertise que já é um legado das organizações sem fins lucrativos que precisamos manter.
Já as OSCs poderiam aprender mais sobre esses jargões, como empacotar mais, produtizar mais o que fazem. É encarar uma prestação de serviço, por exemplo, não como algo que seria um demérito, mas algo que poderia ampliar o seu alcance. Essa troca é muito importante.
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Vocês apontaram na pesquisa que não há um único formato utilizado pelas OSCs para oferecer produtos e serviços ao mercado. Identificaram quatro caminhos possíveis, não excludentes: (I) mudança no modelo de atuação, (II) criação de unidade de negócios, (III) criação de uma empresa para a prestação de serviços, (IV) prestação direta de serviços. O que é preciso levar em consideração para fazer essa escolha? Há algum mais indicado para um determinado tipo de organização?
O que temos visto é que essa aproximação com o mercado pode se dar de maneira sucessiva. Observamos que há quatro estágios bem demarcados. O primeiro é quando alguma empresa, fundação etc. demanda um serviço da organização reconhecendo o seu saber. Um exemplo é o do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ), uma organização que defende a biodiversidade e que foi chamada pela empresa Danone para fazer um estudo sobre o impacto das atividades e serviços da empresa ao longo da sua cadeia de valor. Essa demanda não está descolada do conhecimento do IPE, mas não era algo que tinha nas suas atividades, por exemplo.
Uma organização inclusive pode ir experimentando. Ela começa a reconhecer que tem uma competência e passa a ter proatividade na venda. Quando isso começa a ficar frequente, a própria OSC decide que talvez possa criar uma unidade de negócios, ou seja, ela passa a dar essa consultoria, fazer estudos. Este é o segundo estágio, que está muito vinculada ao modus operandi da organização.
Porém, às vezes, a organização decide criar uma empresa até convidando sócios, para ter mais liberdade para contratar pessoas com outros vínculos, utilizar outras práticas de empresas tradicionais. O lado positivo é ter autonomia e, o negativo desta forma de atuação, é você descolar da missão. E esse é um cuidado, mas é um formato possível. Os escritórios de advocacia já deram vários pareceres possíveis desse tipo de sociedade entre OSCs, empresas e indivíduos.
Um exemplo que trazemos é o do CIES (Centro de Integração de Educação e Saúde), uma organização sem fins lucrativos que foi criada para oferecer exames de média complexidade às populações mais pobres por meio de atendimento móvel. A intensificação das parcerias com prefeituras estimulou a criação de uma empresa voltada para a construção de unidades móveis que garantisse o atendimento médico e cirúrgico sem nenhum risco à população. Surge então a Fleximedical, que é responsável pelo desenvolvimento, manutenção, montagem, logística de equipamentos e infraestrutura (carretas, containers, box etc.), enquanto o CIES tem foco na operacionalização dos atendimentos à população.
E, por fim, temos o quarto estágio, que não é um formato de estrutura organizacional como os outros, mas é uma revisão mais profunda do modelo de atuação. Ou seja, para atender à missão, a organização decide mudar completamente a forma como se relaciona com a sociedade. Esse foi o caso do Instituto de Socioeconomia Solidária (ISES).
Esse quarto estágio eu diria que é o mais raro neste momento. Há uma tendência das organizações irem testando a prestação de serviços. Assim, caso dê certo, criam a unidade e, as mais ousadas, criam uma empresa. Aquelas que estão mudando a sua lógica de atuação são as mais raras.
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E quais seriam então os riscos, como você comentou, da organização gastar mais tempo se dedicando a essa ação de criação e venda de um produto, por exemplo, do que realmente dedicada a sua causa fim? Qual o limite/equilíbrio para não cair nesta armadilha?
Uma organização só deve pensar em iniciativas de mercado se realmente tiver isso atrelado à missão, senão o tempo [dedicado a cada uma das frentes] vai ficar concorrido e a missão comprometida. Uma organização, por exemplo, que tem a expertise no uso da arte para a saúde percebe que pode ampliar o alcance deixando de atuar diretamente nos hospitais, e sim capacitar os profissionais que atuam nos hospitais. Ou seja, talvez a sua capacidade de escala possa ser maior. Alguém pode dizer: Ela está perdendo muito tempo batendo na porta dos hospitais e poderia estar atendendo. Mas, será que é realmente perda de tempo? O que essa ação de capacitação vai ajudar a viabilizar a sua missão até de maneira mais impactante? O foco maior tem que ser sempre a missão.
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Mas para gerar estas aproximações, a pesquisa identificou também alguns desafios. As OSCs apontaram, por exemplo, a questão da terminologia, da falta de conhecimento do planejamento para mercado, da própria cultura organizacional e o perfil dos funcionários. Como superar estes desafios?
Grande parte das OSCs vieram dos movimentos sociais, de um posicionamento contra um sistema posto. E, agora, se deparam com a situação: vão ter que falar e utilizar as terminologias daqueles que sempre foram contra. Não é fácil. São termos como avalancagem, rentabilidade, concorrência, enquanto as OSCs nasceram com palavras de ordem como colaboração. Mas, para estar no mercado, é preciso sim olhar aqueles que estão oferecendo a mesma coisa, É preciso mapear a concorrência. A questão é que são valores muito diferentes, e esses valores se refletem no linguajar.
Claro que existem riscos, que de alguma maneira podem ser minimizados, mas há muitas potencialidades. O que a gente quer mostrar, tanto para as OSCs, quanto para quem está no campo de negócios de impacto, é de que podemos reconhecer que são mundos diferentes, mas que essas aproximações são possíveis e que vão gerar ganhos para todos os lados.
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O que as organizações podem explorar mais nesses modelos para garantir a sua sustentabilidade financeira? Que caminhos as organizações que queiram fazer a aproximação com esse novo modo de operar devem percorrer?
É possível ter ganhos financeiros caso o seu interesse tenha sido esse. O movimento tem dado certo para aquelas que fizeram de forma mais consciente, que ficou claro para a equipe onde se quer chegar, porque está indo para esse percurso e que surgiu como mais uma alternativa interessante e não por falta de alternativas.
É muito ruim quando a organização faz alguma coisa porque está se afogando em dívidas. Se for para fazer apenas por questões financeiras, a probabilidade de ter pedras no caminho pode ser maior do que quando a organização acredita que isso pode ampliar a sua missão. Ou seja, eu quero alcançar a missão e estou tendo dificuldade, e essa é uma solução interessante. Percebemos que esse movimento deu certo quando foi mais consciente e, portanto, planejado.
O estudo completo pode ser acessado no site do ICE. Clique aqui e confira.