Introdução – ética não é detalhe
A Associação Brasileira de Captadores de Recursos (ABCR) surgiu em 1999 com uma missão ousada: fortalecer a captação de recursos como campo profissional no Brasil, com base em formação qualificada, articulação institucional e, principalmente, com princípios de transparência e ética. Inspirada por organizações internacionais como a Association of Fundraising Professionals (AFP), do Canadá e EUA, e pelo Institute of Fundraising, do Reino Unido, a ABCR posicionou-se com clareza desde sua fundação sobre o tema da remuneração na captação: profissionais não devem ser pagos exclusivamente por comissão sobre os valores captados.
Essa diretriz ética não é acidental. Ela é fruto de um acúmulo histórico de aprendizados, debates e experiências internacionais. Está presente em documentos como o Code of Ethical Standards da AFP e o International Statement of Ethical Principles in Fundraising, do qual a ABCR é signatária. É adotada por organizações da França, Espanha, Argentina, entre outros países que buscam construir um campo de captação ético, transparente e valorizado.
Por isso, causa preocupação a proposta de novo Código de Ética da ABCR para 2025, atualmente em consulta pública, que representa uma ruptura com esse legado. O novo texto, ao flexibilizar a possibilidade de remuneração exclusivamente comissionada, sinaliza uma inflexão perigosa. E, ao reformular a missão da entidade para assumir um perfil exclusivamente corporativista, enfraquece o papel histórico da ABCR como agente de fortalecimento do terceiro setor.
Este artigo propõe uma análise crítica e propositiva desses dois pontos, com base em evidências, comparações internacionais e responsabilidade institucional.
Comissão como regra: o curto caminho longo
O novo Código propõe que o pagamento por comissão sobre valores captados, inclusive de forma exclusiva, possa ser aceito mediante transparência e contrato formal. Na prática, foi retirada do texto do código original a frase “não aceitando, sob nenhuma justificativa, o comissionamento baseado em resultados obtidos”, o que significa legitimar o modelo comissionado como forma legítima e aceitável de remuneração.
Esse modelo é rejeitado pelas principais organizações internacionais da área, por razões éticas e práticas. A AFP, por exemplo, proíbe expressamente esse formato, com base em três argumentos principais:
- Gera conflito de interesses, ao priorizar ganhos individuais sobre a missão institucional;
- Compromete a relação de confiança com doadores, que passam a ser vistos como fonte de lucro pessoal;
- Reduz a captação a uma lógica de corretagem, desvalorizando o trabalho estratégico do captador e a criação de uma cultura de captação de recursos dentro das OSCs;
Além disso, modelos comissionados tendem a concentrar a remuneração em poucos casos de sucesso, reforçando desigualdades e precarizando a profissão. A médio prazo, criam um ambiente de desconfiança generalizada, que afeta toda a categoria.
Sabemos que no Brasil muitos profissionais atuam como prestadores de serviço externos, e que a legislação dos incentivos fiscais prevê percentuais de repasse para captação. Esse contexto deve ser considerado — mas não pode servir de justificativa para que a ABCR abdique de seu papel ético.
Em vez de flexibilizar o princípio, a ABCR pode adotar uma solução mais responsável: manter a vedação à remuneração exclusivamente comissionada no corpo principal do Código e propor um anexo específico para tratar dos contratos com consultores externos, especialmente em projetos incentivados. Esse anexo pode definir balizas éticas claras, como:
- Remuneração mínima garantida (fixo + variável), mesmo que simbólica;
- Modelos por entregas ou etapas (ex: diagnóstico, prospecção, submissão);
- Bonificações proporcionais ao esforço e não apenas ao valor captado;
- Transparência contratual e comunicação clara com o doador.
Essas alternativas reconhecem a realidade do mercado sem abrir mão de princípios.
Uma nova missão para a ABCR?
O novo Código propõe também uma mudança significativa na missão da ABCR: de uma entidade voltada ao fortalecimento da captação no terceiro setor para uma associação voltada exclusivamente à representação dos interesses dos profissionais de captação.
Essa mudança pode parecer sutil, mas é profunda. Ao adotar uma lógica de entidade de classe, a ABCR se afasta de sua vocação original de contribuir para o fortalecimento do campo da mobilização de recursos como um todo — incluindo as organizações da sociedade civil, os marcos regulatórios, a cultura de doação e a relação com doadores.
Ser uma entidade representativa não é incompatível com essa missão ampliada. Ao contrário: é exatamente por representar os profissionais da área que a ABCR deve liderar com visão ética, responsabilidade pública e compromisso com o bem comum.
Reduzir sua missão a uma defesa corporativista enfraquece sua legitimidade e sua capacidade de influência no debate público. E dificulta sua interlocução com atores institucionais, como empresas, governos e organizações da sociedade civil.
Comparar para avançar
Um caminho mais construtivo seria a ABCR promover, ainda durante o processo de consulta pública, um ciclo estruturado de escuta com seus associados e com organizações nacionais e internacionais, como a AFP, o Institute of Fundraising (Reino Unido), a AEF (Espanha), e a AEDROS (Argentina). Esses encontros poderiam:
- Ampliar a consciência dos associados sobre os riscos do modelo comissionado;
- Trazer experiências internacionais sobre modelos híbridos de remuneração;
- Discutir caminhos regulatórios específicos para a realidade brasileira;
- Oferecer subsídios para um posicionamento ético sólido e realista.
A ABCR é signatária do Código Internacional de Ética. Isso torna ainda mais importante que seu novo Código de Ética esteja alinhado com esse compromisso público. Um recuo nesse campo pode comprometer sua credibilidade internacional e sua influência regional.
Além disso, seria desejável uma articulação e inclusão no debate de organizações nacionais representativas do campo filantrópico, como Abong, GIFE e Movimento por uma Cultura de Doação (MCD).
Conclusão: fortalecer, não diluir
A ABCR nasceu com a missão de profissionalizar e fortalecer a captação de recursos no Brasil, oferecendo não apenas formação e articulação, mas também referência ética. Sua história está ancorada na defesa de um padrão elevado de atuação, que valoriza o captador como agente de transformação e resguarda a integridade das relações entre organizações e doadores.
O momento atual exige coragem institucional. A facilidade de ceder à lógica mercadológica da comissão pode parecer uma solução pragmática para tempos difíceis, mas compromete a essência da profissão e enfraquece todo o campo. Em vez de abrir concessões perigosas, a ABCR deve se posicionar com firmeza ao lado da ética, da coerência e da visão de longo prazo.
O debate sobre remuneração é legítimo e necessário, mas deve ser conduzido com profundidade, escuta e responsabilidade. O que está em jogo não é um detalhe técnico, mas a credibilidade de uma entidade que se propõe a representar uma profissão essencial para a sustentabilidade das causas sociais no Brasil.
A ABCR tem a oportunidade histórica de reafirmar seus princípios fundadores, liderar com integridade e oferecer ao campo da captação de recursos uma direção segura em meio à incerteza. Que o novo Código de Ética seja, portanto, um instrumento de avanço — e não de retrocesso.