A COVID-19 trouxe uma crise sem precedentes para toda a sociedade mundial. O isolamento social está gerando diversos impactos para todos nós, mas principalmente para as populações periféricas. Nesse momento, o trabalho das OSCs, especialmente daquelas que atuam nos efeitos de curto prazo da pandemia, é fundamental para fazer chegar doações de alimentos e produtos de primeira necessidade a estas populações. A ABCR (Associação Brasileira de Captadores de Recursos) criou o monitor das doações que, até a manhã de 06/04, indicava quase R$ 900 milhões arrecadados em ações relacionadas à COVID-19.
No campo da saúde, também o papel dos hospitais filantrópicos será fundamental, mesmo aqueles que não vão atuar diretamente com os casos do coronavírus. Hospitais que tratam de câncer, por exemplo, estão passando por períodos de revisão de protocolos e procedimentos de proteção de seus pacientes, para evitar que o vírus chegue aos grupos de risco.
O papel das OSCs no médio e longo prazos, porém, ainda não é um tema que vem sendo colocado em pauta. Nossa intenção aqui é provocar uma análise para um prazo mais longo, considerando que as OSCs deverão ter um papel fundamental no momento que arrefecer o processo de distanciamento social.
As questões que colocamos para o debate são as seguintes:
- Qual o verdadeiro impacto econômico para as OSCs nos próximos meses? Considerando que algumas delas já viviam uma crise de legitimidade e financiamento, elas conseguirão se manter “vivas” ao final do período de confinamento?
- Como lidar com o novo momento e adaptar as ações realizadas pelas OSCs para enfrentar os efeitos da crise no médio prazo?
- Como as OSCs podem reagir e aproveitar positivamente o momento que estamos vivendo?
O impacto econômico para as OSCs
Estudo da CAF América, realizado com 554 OSCs de todo o mundo, aponta que cerca de 95% dos respondentes relataram que serão negativamente impactadas pelo Coronavírus e 68% indicam que esperam redução das doações como um dos efeitos. Em breve, pretendemos levantar dados semelhantes para avaliar a situação das OSCs no Brasil, mas temos diversos relatos que apontam situações semelhantes ao que o estudo da CAF sinaliza.
Muitas organizações realizam eventos presenciais como estratégia de captação de recursos. Um exemplo concreto e impactante é do Hospital de Amor. O Hospital tem uma receita de captação de recursos anual de R$ 300-350 milhões. 25-30% desta receita é advinda de leilões realizados por voluntários em todo o Brasil. Com as restrições para realização destes eventos, o Hospital está buscando reinventar suas ações, mas certamente terá efeitos sobre esta modalidade.
Outra forma de doação/parceria que deverá sofrer são das organizações que captam recursos com empresas e fundações nacionais. Apesar de não termos ainda estudos para comprovar esta tese, se nos basearmos no histórico do CENSO GIFE, percebemos que impactos na economia geram impactos no investimento social. Como se espera um impacto significativo na economia em 2020 e 2021, é de se esperar que os investimentos sociais de empresas e fundações devam diminuir em sua totalidade. Além disso, também se espera que parte dos investidores sociais devam direcionar investimentos aos efeitos mais imediatos da crise, o que poderá trazer efeitos para as OSCs que tem parcerias com empresas. Ainda não sabemos os impactos que os recursos incentivados (Lei Rouanet, Fundo da Criança e Adolescente, Fundo do Idoso etc.) poderão ter, mas é de se esperar que diminuam, seja porque as empresas terão lucros menores (diminuindo os recursos que poderão ser direcionados aos projetos incentivados) seja porque as empresas vão considerar que alguns projetos de atendimento direto a crianças e adolescentes, por exemplo, perdem o sentido com o isolamento social. Ainda que isso possa não ser uma realidade (muitas OSCs estão mudando suas atividades para contemplar o atendimento à distância), a percepção geral das empresas poderá ser afetada.
Nesse momento de insegurança às receitas com empresas e indivíduos, organizações que tem parte de suas receitas advindas de Fundações Internacionais ou de Governos talvez estejam menos suscetíveis a oscilações financeiras. A conferir.
O impacto nas atividades realizadas pelas OSCs
Do ponto de vista das atividades realizadas pelas OSCs, há um olhar mais imediato, das entidades que, por causa do isolamento, se vêem impossibilitadas de realizar suas atividades. Creches, entidades sociais de atendimento direto, são exemplos de organizações que estão sentindo muito a mudança. Algumas delas, com suas sedes localizadas nas periferias, discutem se, nesse momento, deveriam redirecionar suas atividades ao atendimento das necessidades básicas da população atendida – assistência e saúde. Três organizações com quem conversei esta semana estavam considerando a possibilidade de reverter seus recursos – capital social, espaço físico e pessoal – para realizar campanhas de arrecadação e distribuição de alimentos, por exemplo.
Mas olhando um pouco mais adiante, é possível que a atenção destas organizações devam se voltar para os efeitos da COVID-19 nas populações que são atendidas.
Estudo publicado em 03/04/2020 pela consultoria Mandalah, aponta um resumo dos principais impactos da COVID-19 na vida de todos nós, olhando numa perspectiva de mais médio/longo prazo. O estudo aponta impactos na economia, saúde, cultura, relacionamentos, alimentação, populações vulneráveis, educação e política. Diversos destes impactos deverão ser considerados por governos, empresas e também pelas OSCs, o que pode gerar mudanças nas prioridades e aumento de atenção a determinados temas.
Alguns dos exemplos de impactos sugeridos pelo estudo e como isto pode gerar novas demandas para as OSCs:
- Nos impactos para os relacionamentos intrafamiliares, o estudo identifica a possibilidade de aumento da violência doméstica, crescimento do abuso físico e sexual de menores, crescimento do número de divórcios e paralisação de audiências na vara familiar. Todos estes impactos geram instabilidade familiar, que pode resultar em efeitos nocivos para o desenvolvimento das crianças no ambiente escolar, por exemplo. Como as OSCs que atuam com atendimento direto de educação de crianças e adolescentes devem atuar preventivamente para evitar ou minimizar estes impactos na vida das crianças atendidas?
- Nos impactos das populações de periferia, o estudo aponta queda no padrão de vida e acesso a itens básicos, alto potencial de contaminação pelo COVID-19, crescimento de milícias nas periferias, desaparecimento dos meios de sustento para moradores de rua etc. As questões que se colocam para as OSCs que estão próximas das periferias são: Como reverter seus recursos para atividades que possam amenizar o impacto da COVID-19 nas periferias? Como ir além do apoio assistencial e monitorar os efeitos de mais longo prazo?
Estes são apenas alguns aspectos que identificamos. Diversos serão os impactos e muitos deles ainda são imprevisíveis. O fato é que teremos impactos enormes na vida em sociedade e será importante que tenhamos pessoas e organizações preparados para lidar com estes efeitos quando o processo de isolamento social terminar.
O grande paradoxo é que, exatamente no momento em que a ação das OSCs pode ser mais necessária, elas correm riscos de conseguir manter suas receitas e, como consequência, manter sua operação estável. Para que isto não aconteça, sugerimos alguns caminhos para as OSCs enfrentarem o desafio presente:
Seja útil para o momento – não se permita paralisar. Muitas organizações estão com suas equipes em casa, o que não necessariamente impede que pensem em como podem ser úteis para este momento, mesmo que sua organização aparentemente não tenha relação com o combate à COVID-19. É importante que todos percebam que, em maior ou menor grau, todos nós podemos fazer algo para enfrentar o problema. Alguns exemplos: O Pró Saber – SP, entidade de educação infantil em Paraisópolis, está mobilizando suas professoras para fazer contato com as famílias das crianças atendidas para avaliar, semana a semana, qual a situação das famílias e como eles podem ajudar a resolver seus problemas imediatos. O ISA – Instituto Socioambiental – lançou uma plataforma inédita para monitorar o avanço da pandemia nas terras indígenas.
É muito importante que sua organização não se deixe levar pelo pessimismo e apatia e que possa se reinventar diante do contexto atual.
Conecte a narrativa de captação de recursos ao tema da COVID-19 – Enquanto muitas organizações tem dificuldades de captar recursos para se manter, outras estão mobilizando muitos recursos para enfrentar os efeitos da COVID-19. Nesse momento, o discurso “precisamos de ajuda porque o isolamento social não nos permite captar recursos da forma como captávamos”, apesar de real e sincero, talvez não gere os efeitos pretendidos. Nesse momento, todos os corações e mentes estão pensando na COVID-19. Identifique a conexão entre sua missão e os efeitos diretos e indiretos da COVID e construa uma narrativa que faça sentido com o momento presente. Nesse momento, solicitar recursos porque sua organização precisa honrar os salários ou para algum tema que esteja descolado do momento presente poderá ser visto como alienado ou simplesmente ser ignorado. Sinto dizer.
Se aproxime de seus parceiros e doadores – É momento de se reconectar com seus doadores, caso você não faça isso com frequência (deveria fazer). Ligue para seus doadores, mantenha contato, mostre o que sua organização está fazendo para enfrentar o desafio do momento. Mostre como é importante que seus doadores continuem presentes e mantenham suas doações nesse momento. Para doadores que estejam vivendo momentos financeiros delicados, peça para que diminuam as doações, mas que não as interrompam. Para doadores que tenham situações financeiras mais estáveis, peça para considerar uma doação adicional neste momento.
Tenha um plano financeiro de contingência e acompanhe semana a semana – Este é o momento de apertar os cintos. Faça um plano financeiro realista. Corte despesas desnecessárias. Considere reduções de jornadas de trabalho de alguns funcionários e negocie com responsabilidade. Seja transparente e solidário com todos – o público atendido e seus funcionários. Acompanhe o plano semana a semana. Não demore para começar a fazer mudanças.
Evite tomar medidas bruscas – Apesar de ser um momento que pede reação rápida, tome cuidado para não tomar medidas bruscas. Demissões em massa, mudanças drásticas de atividades, podem levar a arrependimentos adiante. Afinal, há a perspectiva de que as atividades voltem ao normal em breve. Pode ser que leve 2-3 meses, pode ser que dure um pouco mais de tempo, mas certamente a vida voltará ao normal. E quando voltar, sua organização precisará estar viva para enfrentar novas ondas de mudanças que nos esperam pela frente.
Seja forte. Resista. Persista. Não desanime. Isso tudo vai passar.
Rodrigo Alvarez é Sócio Diretor da Mobiliza.