OSCs e negócios de impacto: aproximações e dilemas

Por Fábio Deboni [1] e Rodrigo Alvarez [2]

Pra começo de conversa

O chamado Setor da Sociedade Civil (ou 3º setor) vem mudando, tentando acompanhar as rápidas transformações que vivemos. O que antes era restrito ao universo das ONGs, hoje conta com uma variedade bem maior de atores. Desde 2013, o Center on Philanthropy and Civil Society [3], de Stanford, passou a cunhar o termo Social Economy (Economia Social) ao campo do investimento de recursos privados em benefício público, campo ocupado por uma variedade mais rica e complexa de organizações – doadores, investidores, ONGs, negócios de impacto, cooperativas, fundações, empresas etc.

Nesse processo, novos termos foram sendo criados. Passamos a chamar as organizações não-governamentais (ONGs) de organizações da sociedade civil (OSC). Saímos da negativa do que não somos/éramos para a afirmação de onde viemos/estamos, reafirmando certo caráter identitário, ainda que ele não seja uma realização plena na atualidade.

A partir deste campo e de toda a sua complexidade, potencialidades e dilemas, temos observado alguns movimentos no setor e apresentamos algumas percepções neste artigo, com o objetivo de contribuir para o debate.

Movimentos do setor

São alguns movimentos que temos observado neste setor de uns tempos para cá:

1. Fronteiras menos óbvias

Aquele conceito clássico dos três setores – governo, empresas e terceiro setor – já não parece mais dar conta de explicar toda a complexa teia de relações entre as esferas pública e privada, entre indivíduos e instituições, entre empresa e sociedade, entre Estado e sociedade. Afinal, na atualidade, até onde vai o papel das empresas, dos governos, dos cidadãos e das organizações da sociedade civil?  Difícil responder de forma resumida e simplista.

2. Coexistência entre o modelo tradicional e o novo

Vivemos tempos de coexistência de modelos de atuação – nos três setores. Governo aberto, inovação pública, Pitch Gov e inúmeras iniciativas de redesenho de políticas públicas tem mostrado que o próprio Estado vem procurando se reinventar, ainda que muitos o critiquem pela velocidade em que estas mudanças (ou projetos de) estejam ocorrendo.

O setor privado vem também procurando se reinventar de um lado – se abrindo mais para iniciativas cidadãs, para diversas agendas contemporâneas complexas, dentre elas, diversidade, mudanças climáticas, anti-corrupção, compliance, etc, além de avançar em direção a modelos de negócio mais responsáveis (vide o movimento global emergente das Empresas B, por exemplo).

Ao mesmo tempo, o próprio setor privado vem sendo bastante questionado pelos consumidores e cidadãos a ser mais efetivamente engajado, a transpor ações de marketing social, greenwashing e sharewashing e a serem players mais transparentes e efetivos na geração de valor que podem/devem entregar à sociedade.

Já o terceiro setor também se depara com estas profundas transformações. Diversas OSCs percebem que é preciso repensar seu modelo de atuação. Algumas delas percebem a necessidade de reconstruir suas teorias de mudança, tentando redefinir o que de melhor e mais efetivo podem entregar para a sociedade em termos de impacto positivo, considerando os recursos disponíveis e suas limitações. As organizações sociais são cada vez mais cobradas a serem mais efetivas, leves, inovadoras e menos burocráticas.

O livro “Social Startup Sucess” lançado recentemente nos EUA, escrito pela professora de Stanford Kathleen Kelly Janus, baseado em longa pesquisa sobre as organizações que estão conseguindo superar os desafios dos tempos modernos, identifica que estas organizações compartilham algumas características:

a) Testam ideias e provam conceitos com poucos recursos (às vezes, com os recursos com que já contam) para, num segundo momento, mobilizar recursos mais volumosos;

b) Medem impacto desde o início, muitas vezes utilizando métricas criativas;

c) Experimentam novas modelos de financiamento, misturando modelos de negócios (vendas de produtos e serviços) com estratégias tradicionais de mobilização de recursos filantrópicos;

d) Atuam de forma colaborativa com outras organizações, indivíduos, empresas e governo;

e) Sabem contar boas histórias.

3. Qual o nosso “modelo de financiamento”?

Nossa OSC tem clareza de quanto custa por mês para além do custo de cada projeto, de onde provém as fontes de recursos, quanto poderia ser diversificado em termos de receitas, o que poderia ser reduzido em termos de custos e despesas?

A questão fundamental aqui é a de refletir sobre qual o valor que a OSC gera à sociedade no tempo presente e qual o valor ela quer/pode continuar gerando num futuro próximo, o que representa a IDENTIDADE DA ORGANIZAÇÃO.

Ao mesmo tempo, refletir sobre quem são os públicos de interesse de nossa organização e como acontecem as trocas entre a organização e seus públicos  de interesse. São trocas que podem ser monetizadas? Ou nossa atuação possui um público de interesse atendido e outro pagante?

Essa reflexão sobre IDENTIDADE e RELAÇÕES é fundamental e determinante para pensar o modelo de financiamento da organização – e se este modelo terá um caráter mais de negócio ou mais filantrópico.

Nossa percepção é que o modelo de financiamento autêntico para uma organização deve ser aquele em que propósito, competências organizacionais e modelo de geração de receitas estejam alinhados.

Desta forma, ela consegue também refletir sobre qual o melhor formato jurídico (ser ONG ou empresa, ou ter os dois formatos coexistindo), qual o melhor modelo de ‘negócio’, governança, gestão, etc.

Muitas vezes, tendemos a seguir atuando no piloto automático em nossas organizações, lutando heroicamente para renovar parceiros e projetos, emplacar novos projetos em editais, manter atendimentos e intervenções, sem, antes, refletir se todas estas ações continuam nos levando na direção que nossa organização quer/deve estar.

4. Medir impacto

Será que a forma como nossa organização segue atuando é a mais eficaz e eficiente para gerar maior impacto?

Nossa organização está disposta a mensurar de alguma forma os impactos que ela supõe gerar? Se ainda não temos nenhuma sistemática de mensuração, precisamos avançar nesta direção.

Cada vez financiadores, investidores sociais e parceiros vão querer de nossas organizações duas coisas básicas: transparência e clareza no impacto gerado. Quando um apoiador nos doa X reais, o que entregamos pra ele/para a sociedade de volta? Mesmo que a gente não consiga ter uma mega fórmula, um super sistema informatizado ou uma consultoria top para nos ajudar nisso, é necessário, ao menos, ter alguma medida do impacto socioambiental positivo que geramos.

5. Não se trata apenas de formato jurídico

Dúvidas sobre o formato jurídico mais adequado para nossa organização são muito comuns atualmente, mas elas podem ser cortinas de fumaça ao debate real que deveríamos fazer: “então nossa OSC precisa se tornar uma empresa, precisa virar um negócio”?

Vamos lembrar que o formato jurídico de uma organização é apenas um meio e não o fim em si mesmo. É apenas uma maneira de a organização alcançar da melhor forma possível sua missão, sua razão de existir. Se para isso é melhor ser uma associação, OK. Se é melhor ser empresa, OK. Se é melhor ter dois CNPJs (ser híbrido), OK.

O que não podemos concordar é que tenhamos que colocar o carro na frente dos bois ao resumirmos este debate ao suposto ‘melhor’ formato jurídico para a organização. Antes de entrar nesta ‘onda’, procure referências de organizações que passaram/passam por esta situação – híbridas, OSCs que viraram empresas, empresas que viraram OSC. Certamente a vida prática e o mundo real nos trarão excelentes aprendizados que serão muito úteis à realidade que nossa organização está passando.

Portanto, não vamos buscar soluções prontas, de prateleira, ou seguir o que a ‘moda’ está tentando nos ditar.

6. Interações múltiplas e não triviais

Como as fronteiras entre os setores estão cada vez mais borradas e menos óbvias, tendemos a sofrer interações (positivas e negativas) com diversos outros setores. Alguns mais óbvios outros nem tanto.

Estamos preparados para reconstruir formas de nos relacionarmos com empresas, governos, cidadãos, universidades, coletivos, outras OSCs, fundações, startups, negócios de impacto, aceleradoras etc?

Hoje, o rol de interações possíveis é muito mais intenso, diversificado e complexo e requer de nós maior capacidade para construir pontes e falar diferentes ‘línguas’ com estes ‘atores’. Também requer uma clareza de quem somos de fato. É mais fácil nos deixarmos levar por modismos quando não temos uma clareza firme de nosso propósito, nosso essência, nossa história.

Inspirações do mundo das startups

boom de startups e negócios de impacto bem como de programas de incubação e aceleração tem trazido insights e aprendizados interessantes ao setor da sociedade civil organizada.

Sobre esta confluência entre este campo e o da filantropia, ISP e organizações da sociedade civil, é preciso questionar alguns ‘mitos’ que pairam no ar e nas conversas de cafezinho:

Institutos e fundações passarão a alocar menos recurso para a filantropia para alocar mais ao campo dos negócios de impacto

Vamos problematizar esta narrativa.

Haverá menos recurso para OSCs? Supostamente os investidores sociais passam/passarão a preferir alocar recursos em iniciativas que tragam impacto social com retorno financeiro. Talvez este seja um caminho real para algumas fundações e não para outras. Difícil cravar essa tendência como algo geral a todos os investidores sociais privados.

Nos parece que uma questão fundamental neste debate é esta:

“haverá menos recursos para que tipo de OSCs?”

O que está em jogo, na verdade, é que este movimento de negócios de impacto deixa mais evidente o cenário atual de que os investidores sociais tendem (não todos, nem de forma unânime, nem ao mesmo tempo) a financiar cada vez menos organizações pouco transparentes, excessivamente burocráticas e pouco ágeis, que não consigam medir o impacto que geram, e que não consigam falar também a língua das empresas, de institutos e fundações.

Nem todos os institutos e fundações, por sua vez, trilharão este caminho. O tema dos negócios de impacto é ainda recente no universo dos investidores sociais e há ‘muita água pra passar embaixo desta ponte’. Merece destaque publicação recém lançada pelo Gife sobre o tema[4], a qual tenta sistematizar um panorama atual deste debate.

A pergunta que cabe aqui é: sendo um gestor de instituto, fundação ou OSC, é possível permanecer ileso e imune a este movimento? É possível fazer de conta que “não temos nada a ver com isso”?

Achamos não apenas que a resposta clara é ‘não’ como seria um erro estratégico ausentar-se deste debate.

Os negócios de impacto vieram para substituir as OSCs.

Agora, as OSCs precisam virar um negócio.

Este tipo de narrativa tem, pelo menos, 2 equívocos importantes.

O primeiro, reproduz debate dos anos 80-90 no Brasil de substituição do Estado pelas ONGs. Quem viveu esta época sabe muito bem que desaguamos nos tempos atuais na relevância da colaboração intersetorial e não na substituição de um setor pelo outro. Aliás, cada vez percebemos que o debate sobre o fortalecimento da esfera pública nunca se mostrou tão necessário e relevante.

Portanto, os negócios de impacto não vieram substituir as OSCs, mas causarão impactos nelas, como já se nota. As OSCs não ficarão inertes a este fenômeno, como já vimos anteriormente. Isso não significa que todas elas precisarão ‘molhar os pés’ ou ‘mergulhar’ no tema, mas certamente não passarão inertes a este fenômeno.

O segundo equívoco reside no fato de que as OSCs não têm que virar negócio, não precisam se tornar uma empresa, não têm que sair da natureza de ‘sem fins lucrativos’ para ‘com fins lucrativos’. Há dois movimentos embutidos nesta questão:

1) A de OSCs rediscutirem seus formatos jurídicos, podendo até se tornarem uma empresa (ou ter modelo híbrido). Mas, como já dissemos anteriormente, esse não é um caminho natural, automático e mandatório, sendo apenas uma opção que deve vir a reboque de uma reflexão organizacional anterior.

2) De que as OSCs precisam ter a mente mais aberta para manejar melhor a dimensão econômico-financeira. Isso não necessariamente implica em “vender-se” ao mercado, mas sim na capacidade de aprofundar melhor a compreensão desta questão e de seus desdobramentos internos e externos, inclusive aprendendo a falar melhor esta ‘língua’.

Lições aprendidas até o momento

O tema e suas confluências e desdobramentos ainda é novo e requer maior reflexão. Um estudo recente muito interessante[5] chamado “Lições na Prática”, liderado pelo ICE, CEATS/USP e Ashoka, aprofundou esta reflexão com dezenas de OSCs e concluiu que há, ao menos, 4 caminhos possíveis que elas têm encontrado para lidar com esta questão:

  • Prestação de Serviços
  • Criação de unidades de negócio
  • Criação de uma empresa
  • Transformação do modelo de atuação

Em síntese, o estudo evidenciou que:

“A missão institucional deve ser(…) o centro dos esforços das organizações da sociedade civil. A incorporação de uma lógica de mercado deve ser vista como uma maneira de expandir a missão. Neste sentido, a criação de um portfólio de produtos e serviços deve ser coerente e alinhado com o propósito da organização, tornando claro que o objetivo é a realização da missão” (Lições na Prática, 2017, pg. 9).

Portanto, fica claro que cada OSC  deveria concentrar esforços no seu propósito, buscando os modelos jurídicos e formatos de atuação mais adequados e eficientes para potencializá-lo.

Infelizmente nos diálogos que temos participado no campo, temos percebido que há entendimentos diversos e contraditórios sobre esta questão. Há uma certa narrativa no ar de que as ‘OSCs devem virar negócio’, o que não reflete em absoluto a realidade. É como se, nesta narrativa, os meios tivessem substituído os fins e não o inverso.

Aceleração de OSCs

Igualmente inspirados em programas de incubação e aceleração de startups e negócios de impacto, começam a emergir programas similares para OSCs. Eles procuram adaptar ferramentas, linguagens, escopo e também, por serem recentes, tentam encontrar um modelo adequado às diferentes realidades (de OSCs) com as quais têm se deparado.

Em geral, as diversas consultorias e organizações de suporte (apoio técnico, de gestão e avaliação) que atuam no terceiro setor já realizam iniciativas similares a estes programas. Portanto, em síntese, não temos grandes inovações neste campo.

Talvez o ponto mais inovador é justamente na adaptação de modelos de programas de capacitação para OSCs como um ‘produto de prateleira’ de ideação, incubação ou aceleração[6].

O quadro a seguir procura refletir sobre três ‘camadas’ possíveis e existentes de programas oferecidos a ‘aceleração’ de OSCs. De cima pra baixo, o quadro sintetiza programas com foco em ideação para iniciativas ainda sem formalização (pessoas, lideranças comunitárias, empreendedores sociais, projetos sociais etc), passando por OSCs já formalmente constituídas, mas num porte pequeno ou médio (incubação), passando por OSCs formalmente constituídas com porte grande e que enfrentam desafios mais robustos de gestão, sustentabilidade e escala.

A seguir cenas dos próximos capítulos

Como vimos ao longo do texto, as reflexões aqui partilhadas estão longe de se constituírem em respostas finais sobre o tema. As confluências e interconexões são inúmeras e as variáveis que interferem nesta agenda são bastante dinâmicas. Além disso, há um dinamismo grande nesta agenda, com iniciativas ainda recentes e passíveis de ajustes, validações e experimentações diversas.

A mensagem que fica até aqui é de que, a nosso ver, o campo da inovação social poderia ser percebido como sendo a melhor confluência de conexão e diálogo entre o campo do terceiro setor (lato sensu) e o campo emergente das finanças sociais e negócios de impacto (o qual, em síntese, busca implementar inovações sociais com ênfase em soluções de mercado). Entre estes dois campos, a nosso ver mais complementares do que divergentes, é possível construir diversas pontes e diálogos frutíferos.

[1] Gerente Executivo do Instituto Sabin (www.institutosabin.org.br). Atualmente coordena a Rede Temática de Negócios de Impacto do Gife (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas) em conjunto com o ICE. Membro do Conselho do Gife. É autor do livro “Reflexões contemporâneas sobre Investimento Social Privado”. fabio@institutosabin.org.br

[2] Fundador e Sócio da Mobiliza, empresa de consultoria especializada em mobilização de recursos. Atua mais de 20 anos no setor sem fins lucrativos. Foi um dos criadores e vice presidente da ABCR (Associação Brasileira de Captadores de Recursos), é parte do Movimento por uma Cultura de Doação e membro do Comitê Curador do Fundo BIS, um fundo criado para fomentar a cultura de doação no Brasil. rodrigo@mobilizaconsultoria.com.br

[3] https://pacscenter.stanford.edu/ 

[4] https://sinapse.gife.org.br/download/olhares-sobre-a-atuacao-do-investimento-social-privado-no-campo-de-negocios-de-impacto

[5] http://ice.org.br/wp-content/uploads/2017/09/Li%C3%A7%C3%B5es-da-Pr%C3%A1tica.pdf

[6] A adoção aqui de ‘produto de prateleira’ não tem caráter de crítica, mas sim o de demarcar a busca pelo tão falado ‘MVP’ (Mínimo produto viável), termo tão usado no ambiente empreendedor. Como se trata de iniciativas (de aceleração de OSCs) ainda recentes (com este formato), as organizações que já estão trilhando este caminho têm procurado refinar estes produtos para tornarem mais acessíveis a um número e uma diversidade maior de OSCs (escala).

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