Setembro marcou o lançamento do terceiro fascículo da Coleção Mobiliza. A série tem como propósito fazer reflexões e apresentar casos do campo social. A terceira edição trouxe discussões sobre “O desafio da sustentabilidade das organizações em uma democracia em transformação”. Com entrevistas, apresentação de ações desenvolvidas por organizações e citação de pesquisas, links e outros conteúdos, a publicação olhou para cenário político, econômico e social em transformação do Brasil e como o processo afeta o campo social e a sustentabilidade financeira de organizações da sociedade civil (OSC). Confira a seguir a matéria de destaque.
Nossa democracia é jovem. Nossos problemas sociais são anciões que marcam presença há séculos na sociedade brasileira. A montanha-russa da política e da economia agita cada canto dos 26 estados e o Brasil se mostra um campo complexo e em constante transformação. Em meio a tudo isso, as organizações da sociedade civil (OSC) ocupam um espaço importante, buscando garantir direitos – dentro de suas especificidades -, militando e endereçando demandas da população. Contudo, ainda vivem questões históricas: como alcançar a almejada sustentabilidade financeira?
Boa parte das organizações que atuam na ponta, próximas às demandas das ruas, vive o desafio contemporâneo de incorporar novas tecnologias – de gestão, financiamento, comunicação – em sua operação. Por outro lado, novos organismos chegam ao campo. São startups sociais, negócios de impacto, coletivos e movimentos impulsionados pelas mídias digitais. Atores que, muitas vezes, carregam em seu DNA o gene da inovação. Observando o ecossistema como um todo, a pergunta que fica é: como os dois lados podem trocar conhecimentos e cooperarem em benefício do interesse público?
Segundo Graciela Hopstein, pesquisadora na área de ciências humanas e sociais e coordenadora-executiva da Rede de Filantropia para Justiça Social, a tecnologia, de fato, está batendo à porta de todos. O campo se amplia, com diferentes modelos de atuação, mas, para além dessa demanda, outros desafios das organizações da sociedade civil ainda continuam latentes. Ela conta que, para além do exercício da modernização, existe o maior desafio de todos: o fator sustentabilidade financeira.
“Não podemos pensar que pautas e agendas vêm de cima para baixo. É o contrário. E a sensibilização da população acontece muito via as organizações. Direitos não são dados, são conquistados. A questão delicada é que recursos são necessários para esse tipo de atuação e, historicamente, o Brasil não é um país com forte cultura de doação. O setor privado, por exemplo, ainda não descobriu uma maneira efetiva de apoiar causas mais delicadas ou polêmicas.” – Graciela Hopstein, coordenadora-executiva na Rede de Filantropia para Justiça Social.
Para Graciela, o campo da filantropia precisa olhar mais para a agenda de direitos e fortalecimento da democracia. Grandes financiadores e doadores individuais precisam, segundo a pesquisadora, destinar recursos para OSC que influenciam políticas públicas e fortalecem o espírito republicano e democrático do Brasil. São exemplos da mobilização das OSC importantes conquistas como a Lei Maria da Penha (2006), a Política Nacional de Resíduos Sólidos (2010) e o Estatuto da Criança e Adolescente (1990).
O campo da filantropia precisa olhar mais para a agenda de direitos e fortalecimento da democracia.
A tecnologia entra em campo
Dentro desse cenário, conhecer os diferentes tipos de organizações, e como elas podem trabalhar juntas, faz a diferença. As OSC de perfil mais tradicional estão se abrindo, buscando se aproximar de seus pares mais novos. Para Graciela não há dúvidas de que as tecnologias facilitaram a conexão e a formação de redes, garantindo maior visibilidade a causas e agendas. “Uma organização tem novas condições e meios para mostrar a que veio, a internet trouxe isso, o que é maravilhoso. Por outro lado, trouxe novos problemas, como as questões de segurança. São muitos casos de movimentos sendo raqueados de forma agressiva, causas sendo distorcidas e apresentadas de outro modo”, comentou.
Nesse sentido, a AppCívico é um bom exemplo de organização que veio para somar no campo social. Além de gestão de projetos, eles também oferecem apoio em desenvolvimento de softwares para construir ferramentas cívicas adaptadas a cada contexto, e serviços de infraestrutura computacional para garantir a disponibilidade, segurança dos dados e atualizações. Recentemente eles trabalharam com a Fundação Avina para conter um problema relacionado à Lei de Migração, que foi votada e aprovada em maio de 2017 e, em novembro, foi apresentado o decreto para regulamentar a legislação.
Durante todo o processo de definição para a elaboração do marco legal, na qual a Fundação Avina era uma das organizações envolvidas, eles tiveram de lidar com o ‘fenômeno das fake news’. Thiago Rondom, CEO da AppCívico, atuou junto com sua equipe nesse processo, orientando a fundação na condução do trabalho.
Ele explica que há um padrão nesse tipo de situação. “As notícias falsas e seus desdobramentos só são impactantes e preocupantes quando se tornam orgânicas. Ou seja, quando apenas perfis falsos e ordenados por robôs multiplicam a informação, não tem relevância. Mas se pessoas reais começam a compartilhar e perfis de verdade usam esse material, algo precisa ser feito”, contou.
No caso da Fundação Avina, o trabalho envolveu amplo monitoramento, mas não foi preciso responder em grande escala às distorções sobre a Lei da Migração porque, isso sim, poderia fazer virar o movimento mais orgânico. Thiago conta que esse é apenas um exemplo da atuação da tecnologia no campo social.
Segundo ele, esse é um caso de interoperabilidade que deve se tornar cada vez mais comum: é a capacidade de um sistema de se comunicar de forma transparente (ou o mais próximo disso) com outro sistema (semelhante ou não). Para ele, o ecossistema social, caminha assim. “Se o governo tem medo de experimentar e arriscar por conta de burocracia e outras questões relacionadas ao dinheiro público, nós, enquanto sociedade civil criamos condições para fazer isso e levamos a solução até ele.”
“O ecossistema de tecnologia como um todo é recente no Brasil. E no meio social mais ainda. Há 30 anos não tínhamos acesso a nada disso. E isso começa nas organizações sociais de base. Por exemplo, desenvolvemos o software de observatório do município de São Paulo junto com a Rede Nossa São Paulo. Hoje, esse observatório está no site da prefeitura. Nós pedimos, nós criamos, chegou no poder público.” – Thiago Rondom, CEO da Appcívico.
Negócios sociais e startups nesse time
Um elemento importante nesse caldeirão dos diferentes atores do campo social está ligado à filantropia (empresarial ou familiar). Institutos e fundações são, historicamente, importantes indutores de projetos encampados por organizações da sociedade civil. Hoje, têm também se aproximado do campo das finanças sociais e negócios de impacto. O importante aqui é sempre reforçar: o caminho não deve ser da substituição, mas da composição. Como negócios de impacto e organizações da sociedade civil de perfil mais tradicional podem cooperar?
Segundo Vivianne Naigeborin, que já passou pela Ashoka e Artemísia e atualmente está na Potência Ventures,
ainda é preciso avançar para que mais resultados sejam alcançados. “É um movimento que cresce junto com as mudanças políticas e econômicas que vivemos, e as organizações começam a conhecer outros parceiros e também outras maneiras de se conectarem e chegarem na esfera política: já há parcerias estabelecidas entre negócios sociais em âmbito federal, estadual e municipal para a qualificação e modernização de serviços públicos ofertados à população. Os resultados são promissores, mas há muito ainda a ser melhorado para que a cooperação seja mais eficaz”, comentou.
Uma parceria desse tipo que tem gerado bons frutos, por exemplo, é a do Instituto Sabin (investidor que atua nas áreas de saúde, esporte e inovação social) e da Artemisia, organização sem fins lucrativos que identifica, seleciona e acelera negócios de impacto em diversos setores. A parceria se iniciou com a Aceleradora da Artemisia.
“Nesse processo, houve intensa troca de experiências e aprendizados, ampliando o conhecimento do Instituto sobre esse novo campo e suas possibilidades. Sabin e Artemisia também corrrealizaram eventos de inovação e conexão entre empreendedores, investidores e representantes do setor de saúde, compartilhando suas redes de contato para o benefício de várias startups que fizeram parte das etapas”, destaca Viviane.
Movimento de fora e para fora
Em meio à análise do atual cenário social brasileiro, Graciela pontua o papel das organizações internacionais como executoras e também investidoras. “Tem um histórico importante sobre as organizações da sociedade civil e ele está conectado à redução do apoio financeiro internacional no início dos anos 2000. O Brasil havia entrado em um ótimo período econômico e partindo do princípio de que a sociedade e a democracia estavam consolidadas diante da economia crescente, os investidores foram para outros países na África e Ásia para criar dinâmicas democráticas. Assim, ficou um vácuo no financiamento social já que não temos uma democracia sólida e, hoje, inclusive, estamos numa crise séria. Precisamos investir no fortalecimento das organizações da sociedade civil e em todos os meios que lutam por direitos e desenvolvimento das comunidades”, explicou.
Segundo a pesquisadora, há indícios de que esse investimento internacional esteja voltando, mas aos poucos e de outras formas. “As organizações sociais brasileiras estão buscando espaços internacionais para chamar atenção para o Brasil. Tem funcionado: temos organizações pela Amazônia financiadas pela filantropia internacional. A Open Society Foundations está hoje baseada no Rio de Janeiro. Temos a instalação da Worldwide Initiatives for Grantmaker Support (Wings), uma rede de financiadores internacionais para movimentos da organização da sociedade civil, além de outros trabalhos como Rede Latinoamericana de Fundações Comunitárias”, afirma.
Tecnologia, democracia e mobilização social
Alguns movimentos globais de caráter mais executivo também acabam se estabelecendo no Brasil e compondo o campo social. A Transparência Internacional é um exemplo de organização independente que trabalha em articulação com governos, setor privado e cidadãos para promover a transparência e a integridade política local. No Brasil, tem atuado mais intensamente nos últimos anos com ações estratégicas, buscando otimizar os esforços de todos na luta anticorrupção.
Fabiano Angélico, consultor da Transparência Internacional no Brasil, reiterou que existem diversos exemplos em que demandas sociais foram atendidas devido a uma boa articulação ou à forte pressão social.
“No nosso campo, podemos destacar a aprovação da lei anticorrupção, em agosto de 2013, como reflexo das Jornadas de Junho, ou a aprovação recente, no Reino Unido, de uma lei que visa a reduzir efeitos perversos dos assim chamados paraísos fiscais”. Para ele, a multiplicidade de atores, vozes, interesses e processos pode ser fortalecida com inovação nas abordagens e técnicas que colaborem na construção de acordos e no fomento a consensos e ações. “Com os olhares mais aguçados de todos esses componentes do ecossistema social, e como podem se complementar, é possível pensar grande para o setor e para nossa democracia”, finalizou.
(*) A matéria é parte do terceiro fascículo da Coleção Mobiliza, que teve como tema: “O desafio da sustentabilidade das organizações em uma democracia em transformação”. Clique aqui para baixar a publicação completa.